TODO MUNDO GANHA
Programas sociais impulsionam economia das comunidades
"Quando eu era pequeno, muitas vezes só tinha o beiju para levar para a escola. Eu comia antes de chegar lá, para não deixar que a criançada ‘mangasse’ de mim. Tinha medo dos outros, passava vergonha”. Duval Pereira Lima tem 65 anos, é casado, pai de quatro filhos. Ele mora há 60 anos em Pedra Branca, uma pequena cidade do Vale do Piancó, região pobre e seca do sertão paraibano, a quase 400 quilômetros da capital.
Ele conta a história emocionado, com voz embargada. O beiju de que falou é uma massa de milho, que servia para alimentar os animais e também as crianças, no passado. Duval foi agricultor toda a vida, como o pai e seus antecessores. Aposentou-se e montou uma pequena barbearia ao lado da praça da igreja, onde cobra R$ 1 ou R$ 2 pelo corte de cabelo.
A praça é símbolo da mudança que a cidade de menos de cinco mil habitantes viveu nos últimos anos. Todas as noites, os jovens se encontram no local para aproveitar a rede Wi-Fi grátis e se conectar ao mundo, por meio da internet, a partir dos celulares.
Pedra Branca, como centenas e centenas de municípios brasileiros, vive hoje uma nova realidade, impulsionada pela implantação de programas sociais do governo federal, integrados e articulados entre si. Enquanto na Paraíba o Bolsa Família é o vetor central da mudança, em Itanhaém, cidade praiana e turística do litoral Sul de São Paulo, com cerca de 95 mil habitantes, a mudança partiu da agricultura, com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Duval é taxativo: “O Bolsa Família é muito bom. Não é muito dinheiro, mas aqui ajuda muito o pessoal todo.” Ele acredita que todo mês o Bolsa Família injeta entre R$ 500 mil e R$ 600 mil no comércio da cidade. “Hoje ninguém vai mais embora daqui para procurar emprego”, reforça o barbeiro. “Aqui tem trabalho”.
Brincalhão, ele recorreu a algumas “tecnologias” para agradar os clientes: um “ar condicionado” improvisado, com um ventilador apontado para uma bacia cheia de água, e o borrifador para molhar os cabelos e refrescar o corpo, tanto de quem está tendo o cabelo cortado como para o dele mesmo.
Ele lembra a infância difícil, sofrida com a estiagem. “O primeiro sapato que eu botei no pé foi com 17 anos, emprestado de um vizinho”. Duval, seu pai e seus oito irmãos muitas vezes trabalhavam em troca de milho ou feijão.
Uma realidade parecida foi relatada por Ivan de Souza, 38 anos, enquanto o barbeiro o atendia. “Aos oito anos, eu já trabalhava na roça, com meu pai. Três dias na nossa roça e três dias ‘alugados’. A gente cuidava do algodão dos donos de terra. Eles nos pagavam em milho. Nossa comida era milho com leite e pão com leite”. Sua família tem outra vida. Ele planta e trabalha numa oficina de motos e bicicletas. A família é beneficiária do Bolsa Família. Ivan faz questão de que os três filhos, de 15, 11 e 8 anos, estudem. “Meu menino nunca precisou pegar numa enxada”.
O Bolsa Família também ajudou muito a família de Cícero e Maria Ledriana Silva. Agricultores, eles recebem o benefício há nove anos: os atuais R$ 119 complementam a renda da família. “O dinheiro sempre ajudou muito. Um pouco para a feira, para comprar um chinelo, uma roupa, um remédio às vezes, um livro que precisa para escola ou até para tirar xerox”, conta Ledriana.
Há um ano, o casal montou uma horta no meio do sertão, que recebe água de um poço perfurado por eles. Começaram produzindo cebolinha, que hoje vendem para a prefeitura: R$ 60 por mês. “Vamos começar a vender para o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) também. Já tivemos a reunião na prefeitura”, contou sorridente Ledriana, prevendo um ganho de mais de R$ 500 por mês.
“Estamos ampliando”, destacou Cícero. “Plantamos também coentro, berinjela, pimentão, pimenta de cheiro, abobrinha e quiabo. Tem mamão para comermos em casa, mas quando tem bastante, a gente ainda vende. Tudo natural”. O produtor explica que aprendeu muita coisa com o pai. “Ele sempre trabalhou pros outros e me levava junto. Por isso, não estudei. Aprendi também com programas de TV. E, sempre que eu preciso de algo, peço pro meu filho pesquisar para mim na internet”, conta.
O filho mais velho, diz com orgulho, acaba de entrar no curso de Administração da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa. “Passou, entre os colegas de escola, em 1º lugar no Enem”, comemora Ledriana. O dinheiro vindo do PAA vai ajudar os estudos, explica Cícero. “Meus filhos agora vão precisar ainda mais de minha ajuda, porque estão indo para a faculdade”.
Em Igaracy, cidade vizinha a Pedra Branca com pouco mais de 6 mil habitantes, o comerciante Whellington Lima da Costa, 45 anos, é um entusiasta das mudanças positivas que a região viveu na última década. “Meu pai já era comerciante aqui. E, quando dava seca, o pessoal vinha para quebrar o comércio, ficava todo mundo aflito”, lembra. A seca atual durou mais de dois anos e foi uma das piores desde 1932. “Não tivemos problema”, destaca, ao apontar algo que muitos nas cidades da região relatam. Não há mais saques. “Hoje todo mundo tem seu ganho”.
Dono de duas lojas na praça central – uma de pequenos equipamentos e suprimentos agrícolas e outra de eletrodomésticos –, ele conta que não há mais miseráveis na cidade. “Antigamente, você contava nos dedos quem tinha carro. Moto não existia 12 anos atrás, ninguém tinha dinheiro para comprar. Hoje você pode ir na zona rural, em qualquer bairro da cidade, e vê as motos”.
O comerciante Whellington considera o Bolsa Família essencial para municípios como Igaracy, com pouca dinâmica econômica própria. “Nas cidades pequenas, se não tivesse a ajuda do governo federal, não existia nem comerciante. O pessoal recebe o Bolsa Família e vem comprar. Compra fiado também, em 30 dias vêm e pagam, sem problema”, destaca.
A filha mais velha do comerciante estuda na capital do estado. Está terminando o ensino médio e quer estudar Medicina. “Ela vai pegar o Fies (Financiamento Estudantil) para poder estudar”. Os dois outros filhos moram em Igaracy. Todos estudam e têm transporte garantido para a escola. “Antigamente, o pessoal da zona rural vinha em cima de carro, acontecia muitos acidentes. Hoje andam de ônibus, aqueles amarelinhos com faixa preta, em uma estrada boa, que foi asfaltada em 2010”, conta o comerciante, referindo-se aos ônibus do programa Caminho da Escola, do Ministério da Educação.
Ele ainda lista outras importantes ações do governo federal na região: uma nova escola está em fase final de construção, casas foram entregues pelo Minha Casa Minha Vida, a prefeitura recebeu máquinas para apoiar a produção, como retroescavadeira, caçamba e patrola, e uma adutora foi inaugurada. A cidade mudou.
Muito mais que bananas – Ao percorrer o trecho da BR-101 no litoral do estado de São Paulo, que liga Praia Grande até Registro, o cenário é diferente. A água é abundante. À esquerda, o mar e a praia dominam as estações turísticas, os balneários frequentados por milhões de moradores da capital paulista na primavera e no verão - a principal fonte de renda dos municípios.
À direita, cercada pelas montanhas que protegem os últimos resquícios de Mata Atlântica no país, estão as bananeiras, maior fonte de renda desta região no passado. O litoral sul paulista sempre teve destaque na produção de bananas, com grande aceitação no mercado externo, principalmente no Uruguai e na Argentina.
Nas últimas décadas, entretanto, o produto perdeu mercado, e os agricultores familiares tinham dificuldade em pagar as dívidas. “Eu quebrei! Tinha cento e poucos empregados. Hoje, só tenho um”, conta Antonio Isaías dos Santos, 66 anos, nascido no Paraná e morador de Itanhaém desde os anos 80. “Em 96, perdi milhares de pés de banana. O vento derrubou tudo. Foram três anos seguidos. Ficamos sem saída, foi perda total”.
Em 2007, com recursos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a prefeitura inaugurou o Banco de Alimentos, experiência que se tornou um divisor de águas para a produção agrícola local. Apesar de ser entendida como uma política de redução do desperdício de alimentos, a iniciativa foi além na cidade do litoral paulista. Ao concentrar no equipamento a compra de merenda escolar e do PAA e com a implantação da Feira do Produtor em 2011, também com apoio do governo federal, a agricultura e a pesca local foram retomadas, a área rural foi valorizada e a autoestima dos produtores melhorou.
“Todo mundo agora está investindo em hortaliças, palmito pupunha, está recomeçando a plantar, está diversificando”, explica Antonio Isaías. De dez anos para cá, ele montou sua horta e já consegue vender entre R$ 3 mil e 4 mil por mês. Boa parte é vendida para a prefeitura usar na merenda das crianças, por meio do Programa Nacional de Merenda Escolar. “Também estou entregando direto nos mercados, no sacolão, em seis restaurantes”, sorri.
A banana ainda é o carro-chefe, junto com a couve. E ele planeja expandir a produção. “Quero montar uma estufa e fazer produção hidropônica com alface, chicória e outras verduras”, conta. O cuidado com o produto é uma de suas marcas. “Para entrar no sacolão, tem que ser produto de primeira. O pessoal é mais exigente”.
Maximiano Gonçalves de Jesus, o seu Massur, 70 anos, também comemora o investimento que fez na diversificação da agricultura. Servidor público estadual aposentado e ex-vereador por duas vezes, ele mudou de vida há 16 anos e montou seu sítio, com a esposa e seus dois filhos. Tem 18 mil pés de palmito, todos produzindo, em dois alqueires de terra. Também planta abóbora, jiló, inhame, mexerica e jaca, além de criar galinhas.
No bar que montou na frente do sítio, onde os produtores da região se reúnem para conversar e tomar uma cerveja no final do dia, ele explica que o começo foi difícil. “Você plantava e não vendia. Um quilo de abóbora custava R$ 1 na cidade. E o atravessador comprava da gente por R$ 0,05. Hoje, a gente negocia o produto e entrega no Banco de Alimentos. Vendemos R$ 51 mil por ano para a prefeitura”, comemora, acrescentando que acaba de construir três tanques para a criação de tilápias e traíras. “No próximo ano, já começo a retirar os peixes para venda”.
Marcos voltou para Itanhaém depois de uma temporada em São Paulo. Quando a situação não estava boa, ele foi morar na capital paulista. Incentivado pelo pai e pelo PAA, voltou para Itanhaém para ajudar a família no sítio. “Não me vejo mais morando em São Paulo”, conta. Usa agora a experiência em vendas na área de telefonia celular para ampliar os resultados na feira. A barraca ganhou uma página no Facebook (www.facebook.com/barracadaveva). “Coloco lá o que a gente produz. O pessoal também encomenda: ‘deixa reservado para mim duas lasanhas, uns três quilos de palmito’. É muito bacana”.
A Feira do Produtor de Itanhaém também tem sua página própria no Facebook (www.facebook.com/feiraagricola.itanhaem), com mais de cinco mil amigos, e um blog (http://feirapopulardeitanhaem.blogspot.com.br). Quem gerencia e publica o conteúdo é a agricultora Patrícia Ricomini, 35 anos, casada e mãe de uma filha de nove anos. “Posto curiosidades, produtos que temos na feira. O pessoal acompanha e vem buscar”, conta. O canal também é importante para as vendas. “O pessoal pede pela internet, a gente passa o endereço por inbox e eles vêm buscar em casa, durante a semana. Já mandei produto para Itapecerica da Serra, São Paulo e Santos”.
A renda principal da família vem das vendas na feira, onde ela tem uma barraca desde 2011. Começou com doces, depois compotas. Há pouco, compraram uma desidratadora de banana. “Agora tenho as conservas, doces cristalizados, as farinhas, o brigadeiro de banana, bolachas e queijos”.
Curiosa e estudiosa, Patrícia também vende para a merenda: bolo de banana, banana passa e até farinha de banana verde, que “traz diversos benefícios para a saúde”. “Serve para colesterol, diabetes, triglicérides e prevenir câncer de intestino e a obesidade”, ensina. Ela continua investindo na diversificação. “Já estamos produzindo farinha de inhame, que reduz sintomas da menopausa e é antiinflamatória, e de berinjela, que age no ácido úrico”.
Os pescadores também ganharam barracas. Há unidades em diversas praias da cidade, como em Balneário Gaivota, onde Vanderlei Barbosa, o Deco, pesca e vende. Aos 46 anos, o ex-mecânico de carros conta que a feira trouxe benefícios. “De quatro anos para cá, melhorou bastante. Trabalhamos com todo tipo de peixe: corvina, pescada, robalo, espada. Consegui investir num freezer para fazer uns congelados e em um barco melhor”.
Casado, explica que seus filhos ajudam na limpeza dos peixes em casa. “E todos estudam”, destaca. As vendas do verão são boas, devido aos turistas. No inverno, entregam o peixe para o PAA, uns 500 quilos, 600 quilos por ano. “Ajuda a gente a se manter”, explica.
Em breve, os produtores de Itanhaém terão um espaço permanente para as vendas. Uma nova sede do Banco de Alimentos será entregue no primeiro semestre de 2015. No local, terão barracas feitas de alvenaria, além de uma cozinha piloto para alimentos processados. O espaço abrigará também uma unidade de processamento de pescado, que vai permitir usar o produto para a merenda das crianças da cidade.
As histórias dessas duas cidades, tão distantes geograficamente, com culturas tão diferentes, têm em comum o desenvolvimento obtido com inclusão social. A articulação dos programas sociais e a ação integrada dos governos federal, estaduais e municipais permitiram que sua população voltasse a sonhar. E a acreditar que o país do futuro já é o Brasil do presente.
Texto: Márcio Leal
Reportagem: Luiz Cláudio Moreira Leia também
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